Capítulo 3: “Quem está endividado é porque é desorganizado”: desmontando um julgamento simplista sobre a realidade financeira

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Com total honestidade, poucas afirmações carregam tantos preconceitos quanto essa: a ideia de que pessoas endividadas são, por definição, desorganizadas ou irresponsáveis. É um julgamento que machuca, desmotiva — e que, além disso, ignora os fatores estruturais, emocionais e conjunturais que compõem a vida financeira dos brasileiros.

Segundo estudo da Serasa Experian, mais de 70 milhões de brasileiros estão negativados — o maior número já registrado. Desses, a maioria tem renda familiar abaixo de R$ 3.000 e convive com oscilações constantes no emprego, aumento de custo de vida e responsabilidades familiares pesadas. Chamar esse grupo de “desorganizado” é apagar sua realidade.

A economista Mônica Aguiar, especialista em finanças comportamentais, afirma com firmeza: “Endividamento não é fracasso — é resposta. E essa resposta muitas vezes nasce do contexto, não do comportamento.” Ou seja, o problema nem sempre está no indivíduo, mas no sistema em que ele está inserido.

Espero que se entenda com clareza: a organização financeira é um processo, não uma condição. E estar em dívida não significa ausência de esforço — muitas vezes é o contrário. É comum encontrar famílias que montam planilhas, que buscam negociar, que cortam gastos — e mesmo assim não conseguem equilibrar as contas. A causa não é desorganização, mas descompasso entre renda e custo mínimo de vida.

Gostaria de compartilhar uma observação recorrente nas entrevistas de campo que realizei: pessoas que começaram a se endividar após uma demissão, um acidente, uma separação ou o nascimento de um filho. Situações que exigem ação imediata e que muitas vezes encontram no crédito a única resposta viável. Nessas horas, o cartão, o empréstimo ou o cheque especial não são escolhas — são sobrevivência.

Claro que existem casos de consumo impulsivo, de ausência de controle ou de desconhecimento sobre produtos financeiros. Mas mesmo nesses cenários, a educação é solução — não o julgamento. O economista Gustavo Cerbasi, em uma palestra sobre finanças emocionais, afirmou: “Julgar quem se endividou é como culpar quem engordou sem conhecer o que viveu. A economia exige empatia.”

No aspecto técnico, o superendividamento pode surgir por fatores diversos:

Inflação acumulada em itens essenciais, como alimentação, energia, transporte.

Mudanças na renda familiar: queda salarial, desemprego, morte de provedor.

Acesso indiscriminado ao crédito: limites altos, múltiplos cartões, empréstimos pré-aprovados.

Fragilidade emocional frente a crises: consumo como alívio psicológico.

A Lei do Superendividamento, sancionada em 2021, reconheceu essas nuances e abriu espaço para renegociação judicial, proteção ao consumidor e limites de cobrança abusiva. Um avanço que reconhece que o problema é social, não apenas individual.

Outro ponto importante: a organização financeira requer ferramentas, tempo e conhecimento. Muitos brasileiros não tiveram educação financeira na escola, não receberam orientações em casa, e ainda enfrentam uma comunicação difícil com instituições bancárias. Mudar esse cenário exige esforço coletivo — e isso inclui quebrar o mito do “endividado desorganizado”.

A professora Eliane Tancredi, da Unicamp, propõe uma mudança de mentalidade: “O orçamento deve ser usado como ponte, não como julgamento.” O que ela defende é a construção de espaços seguros para planejamento — onde a pessoa possa olhar para seus números sem medo, sem culpa e com apoio.

Concluo este capítulo com uma convicção ética: chamar alguém de desorganizado por estar endividado é reduzir uma história complexa a um rótulo superficial. E, sinceramente, não existe transformação sem empatia. O caminho da organização existe — mas ele começa quando o julgamento dá lugar à escuta, e a culpa abre espaço para o planejamento.

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